Cidadania in foco

terça-feira, 21 de abril de 2020

19 de Abril – Dia do Índio

OS ÍNDIOS E A CIDADANIA



https://youtu.be/TQNMkjnjq-w


Este é o país que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto não, [...] o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Esta é a verdadeira história. Nunca foi contada a verdadeira história do nosso povo. Assim discursou Marcai de Souza Guarani para o Papa João Paulo II em Manaus, em 1980. Três anos depois, ele seria morto, em sua casa, por defender os direitos territoriais de uma aldeia guarani no Mato Grosso. De norte a sul e de leste a oeste do pais, há povos indígenas que insistem em sobreviver, após quase quinhentos anos de uma história de guerras, escravização, epidemias, espoliação e desrespeito. Alguns povos fugiram da convivência com os neobrasileiros e ainda hoje se recusam a um contato mais intenso. Outros mantêm um convívio que data de séculos. Atualmente, constituem cerca de 210 povos distintos, falando mais de 170 línguas e dialetos conhecidos. No passado, já foram mais povos, com população bem superior à estimada atualmente. Os de hoje são remanescentes dos milhões de habitantes que aqui viviam na época em que os primeiros europeus chegaram e deram à terra o nome de Vera Cruz e, depois, Brasil. E desde 1500 se discute qual será o futuro daqueles que, por um erro histórico, foram chamados de 'índios'. Que direitos têm eles sobre as terras que ocuparam tradicionalmente, ao longo de gerações? Que destino terão esses povos tradicionais neste mundo de plena globalização? Que direitos têm como cidadãos? São eles cidadãos do Brasil? Antes de vermos quais os direitos dos índios - e aqui falamos de 'direitos', e não de 'privilégios'-, é preciso pensar a respeito dos sujeitos desses direitos; nossa primeira pergunta é: "Quem são os índios?" No passado, dizia-se que eram "sem fé, sem lei e sem rei"; inúmeros foram os esforços para que abandonassem suas tradições e se integrassem à comunhão nacional. Hoje, pesa sobre eles a acusação de que se aculturaram e, portanto, perderam aquilo que os diferenciava de outros segmentos da população brasileira: a cultura. No passado se buscou, de diversas formas, fazer com que os índios deixassem de ser índios, abandonando seus modos de vida, seus rituais e suas línguas, para se tornarem brasileiros, civilizados. Hoje, cobra-se deles o contrário: que falem suas línguas, mantenham suas tradições, se preservem dos males da civilização. Ou que deixem então, de uma vez por todas, de insistir em se manter como índios. Essa discussão é importante, pois em muitos conflitos que envolvem índios e brancos, foi - e ainda é -estratégico questionar a identidade de comunidades indígenas, para poder questionar e usurpar os direitos que elas possuem sobre determinados territórios. Políticos, a imprensa, e até mesmo alguns intelectuais, com frequência colocam uma crítica à atitude dos antropólogos - profissionais que se dedicam ao estudo dos grupos indígenas e passam longos períodos entre eles. Acusam-nos de querer preservar os índios em uma redoma, como em um jardim zoológico, ou de pretender congelá-los, para que continuem do jeito que sempre foram, impedindo-os de mudar. Os antropólogos já atestaram, em diversos estudos, que faz parte da essência das culturas a mudança, a transformação. Tanto nossa cultura como as indígenas mudam, seguindo ritmos próprios e alheios, quando são impelidas a se transformar pela ação de agentes vindos de fora. No entanto, apesar das mudanças, uma cultura indígena só deixa de ser considerada assim quando os membros de seu grupo perdem a consciência de seu vínculo histórico com sociedades pré-colombianas (ver Carneiro da Cunha, 1987, p. 15). Critérios de indianidade Mas, afinal, quem é índio e quem nao é? São índios apenas aqueles que vivem nas aldeias? Só aqueles quefalam suas línguas maternas? E os que abandonaram as aldeias e vivem hoje em centros urbanos? E os que falam português, têm título de eleitor e carteira de trabalho: continuam sendo índios? O primeiro ponto a ser esclarecido é a origem do termo 'índio'. Trata-se de uma designação genérica, imposta a várias populações muito diferentes entre si. Quando os europeus chegaram à América, pensando ter alcançado as índias, identificaram como 'índios' os habitantes que encontraram. Mesmo depois de verificarem que a América constituía um continente à parte, não ligado àÁsia, conservaram esse nome, que continuou a designar todos os habitantes da América que não fossem europeus (ver Melatti, 1993). Fruto, portanto, de um erro histórico do século 16, e invenção da sociedade nacional, essa denominação acabou por adquirir uma conotação política. Passou a ser incorporada pelos grupos indígenas no processo de construção de uma identidade coletiva, usada para se autodenominarem diante do restante da sociedade. Ao mesmo tempo que estabelece um contínuo de semelhanças estruturais entre as diferentes sociedades indígenas, o nome cria um marco em relação aos ditos civilizados. A manutenção dessa identidade social coletiva por parte dos índios passa pela manipulação de suas especificidades culturais e dos estereótipos da sociedade envolvente, mas não implica a anulação de suas marcas étnicas. Ao contrário, apesar de índios, esses diferentes grupos continuam a ver a si mesmos e a sepensar como formações sociais homogéneas e distintas entre si: um yanomami, ou um guarani, antes de pensar em si mesmo como índio, se vê como yanomami, ou guarani (ver Grupioni, 1992). Isso recoloca o problema de como definir os índios. E a questão se complica ao pensarmos na grande miscigenação ocorrida ao longo desses quase quinhentos anos de contato entre brancos, negros e índios; e ao relembrarmos que os índios adotaram muitos hábitos, instrumentos e crenças dos brancos -, como ferramentas, roupas, ideias cristãs e a própria língua portuguesa. A necessidade de definir com clareza quem são os índios está ligada à necessidade de saber quem são os beneficiários de certos direitos. Muitos têm sido os critérios para procurar definir quem são os índios e diferenciá-los do restante da população brasileira. Critério racial O critério mais antigo é o racial, pelo qual se procura evidenciar as diferenças de características físicas. O ponto de partida é uma visão da espécie humana dividida em grupos que compartilhariam caracteres hereditários comuns, identificáveis somaticamente. Nesse sentido, grupo indígena seria aquela comunidade de descendentes 'puros' de uma população pré-colombiana. Esse critério, já rechaçado pela ciência, não se aplica aos índios: eles não formam uma única raça, sendo constituídos por populações com profundas diferenças entre si. Outro problema desse critério é que, a não ser em caso de absoluto isolamento social e geográfico, população alguma se reproduz sem miscigenação. Sendo assim, bem poucos seriam os grupos que caberiam em uma definição desse tipo (ver Melatti, op. cit. e Carneiro da Cunha, 1986). A cultura como critério O critério de cultura foi criado para substituir o de raça. Grupo indígena seria, então, aquele que compartilhade valores e práticas culturais de seus antepassados pré-colombianos - língua, religião, técnicas e práticas cotidianas. Essa perspectiva implica dois pressupostos que, segundo Carneiro da Cunha (op. cit., p. 115), devem ser erradicados: a) o de tomar a existência dessa cultura como uma característica primária, quando se trata, pelo contrário, de consequência da organização de um grupo étnico; e b) o de supor em particular que essa cultura partilhada deva ser obrigatoriamente a cultura dos ancestrais. Não devemos esquecer de considerar o caráter dinâmico da cultura, que se transforma a todo momento e que permite aos homens explicar cada nova situação em que se encontre. As culturas estão em constante mudança. Basta observar como falávamos ou nos vestíamos há cem ou duzentos anos, para constatar nossas diferenças em relação a nossos antepassados. Se isso vale para nossa sociedade, vale também para as sociedades indígenas. Tal processo se acentua ainda mais quando o grupo étnico é forçado a mudar de ambiente, ou interage com povos de tradições muito diferentes. Os grupos indígenas no Brasil passaram por inúmeros processos de pressão social e de mudança de ambiente que, inevitavelmente, geraram mudanças. Muitas vezes foram impostas novas crenças e até uma nova língua, proibindo-se que as crianças falassem suas línguas maternas e que seus pais praticassem os rituais de seus antepassados. Logo, seria muito difícil definir os grupos indígenas em termos da continuidade de práticas culturais, pois estas, por sua própria essência, são extremamente dinâmicas. A auto-identificação étnica Ao analisar e criticar os dois critérios anteriores, a antropologia chegou a um outro, que parece o mais adequado: é o que reserva aos próprios grupos étnicos o direito de decidir quem são e quem pertence a seu grupo. Esse critério é definido como o de auto-identificação étnica. Nas palavras de Carneiro da Cunha (op. cit., p. 111): A antropologia social chegou à conclusão que os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando se esta distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto ao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão-somente de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou seja, ele dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão. De acordo com esse critério, um grupo de indivíduos pode ou não ser considerado indígena a partir da identificação do próprio grupo, do fato de seus membros se considerarem índios, ou não. Grupos indígenas são aqueles que, tendo uma continuidade histórica com grupos pré-colombianos, se consideram distintos da sociedade nacional. E índio é todo aquele que se reconhece como pertencente a uma dessas comunidades, e é por ela reconhecido como um de seus membros. O fundamental, portanto, é considerar-se e ser considerado índio; para isso, pouco importa o fato de usar relógio e roupas, ou falar português. Resumindo, a identidade étnica de um grupo indígena é função de sua auto-identificação e da identificação pela sociedade envolvente (ver Carneiro da Cunha, op, cit., p. 118). Mas aqui é preciso fazer um alerta: muitas vezes, setores da sociedade envolvente ocultam interesses particulares ao negar a identidade dos grupos indígenas. Isso acontece de forma recorrente quando está em questão a posse da terra. Os direitos dos índios Em tempos recentes, o próprio governo procurou mais de uma vez fazer com que os índios deixassem de ser índios, por decreto. Em 1978, o governo militar propôs um decreto de regulamentação da emancipação dos índios. Dois anos depois, o presidente da Funai queria modificar o Estatuto do índio (Lei 6.001), com a mesma finalidade. Por trás dessas duas iniciativas, as intenções eram claras: eliminar alguns índios e, com isso, o direito histórico que eles possuem sobre suas terras. Longe de ser um privilégio, a posição especial que os índios ocupam na sociedade brasileira é um direito. Trata-se de um direito histórico sobre esta terra da qual, afinal, eles eram senhores, muito antes de se constituir o Estado brasileiro. Esse direito, bem como a proteção às terras dos povos indígenas, não decorre, como pensam alguns, de sua vivência ecológica, isto é, do fato de viverem em harmonia com a natureza. Tais direitos provêm do fato de esses grupos terem um perfil social e culturalmente diferenciado. Os direitos dos índios não são essenciais apenas para sua defesa, mas também para que tenham acesso à cidadania plena, da qual não são os únicos historicamente excluídos (ver Carneiro da Cunha, op. cit. e Andrade & Viveiros de Castro, 1988). Mais uma investida contra os direitos indígenas ocorreu durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, quando se elaborava a atual Constituição. Uma das propostas (Artigo 271 do Projeto A de Constituição, de novembro de 1987), apresentadas por parlamentares ligados a interesses contrários aos dos índios, previa que não seria aplicável aos índios "considerados com elevado estágio de aculturação". No entanto, graças a uma intensa mobilização de várias comunidades indígenas e entidades de apoio aos índios, que se deslocaram para o Congresso Nacional a fim de externar sua preocupação com esse dispositivo, ele não foi aprovado. Essa articulação foi de fato fundamental para que o texto constitucional aprovado em 1988 representasse um avanço na consolidação dos direitos indígenas, inclusive em comparação com as constituições anteriores. Durante todo o ano de 1988, o movimento indígena e o movimento de apoio aos índios se articularam para conduzir as iniciativas referentes aos direitos indígenas na futura Constituição do país. Além de participar das discussões de temas correlatos, assessoraram os parlamentares na elaboração de propostas e emendas constitucionais em favor dos índios. Esse movimento contribuiu muito para garantir a consagração dos direitos indígenas e para barrar as ações de grupos contrários, interessados na exploração dos recursos naturais dos territórios ocupados pelos índios. Direitos indígenas na Constituição de 1988 Promulgada em 5 de outubro de 1988, a atual Constituição da República Federativa do Brasil delineou novos marcos para as relações entre os povos indígenas, de um lado, e o Estado e a sociedade brasileira, de outro. O grau de detalhamento do novo texto constitucional é revelador do contexto em que foi gerado, com o posicionamento de parlamentares favoráveis e de outros contrários aos índios. E também demonstra a estratégia política empregada nesse processo, levando para o debate na Assembleia Nacional Constituinte confrontos que ocorriam longe do Legislativo. Assim, apesar das ressalvas a determinados dispositivos, elas são, como avaliou Carneiro da Cunha (1988) "as marcas das batalhas travadas nos debates e nas negociações". O maior saldo dessa Constituição, que rompeu com uma tradição da legislação brasileira, diz respeito ao abandono da postura integracionista que sempre procurou incorporar e assimilar os índios à 'comunidade nacional', vendo-os como uma categoria étnica e social transitória, fadada ao desaparecimento. Com a aprovação do novo texto constitucional, os índios não só deixaram de ser considerados uma espécie em vias de extinção, como passaram a ter assegurado o direito à diferença cultural, isto é, o direito de ser índios e de permanecer como tal. Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-los à comunhão nacional, como estabeleciam as constituições anteriores, mas é de sua responsabilidade legislar sobre as populações indígenas, no intuito de protegê-las (Artigo 22 da atual Constituição). Uma longa tradição jurídica, que remonta à discussão da legitimidade dos títulos de posse em terras do Novo Mundo entre espanhóis e portugueses, passando pelas sucessivas constituições brasileiras, reconhece a soberania indígena e os direitos territoriais dos índios no Brasil, considerando que foram os que primeiro habitaram e possuíram estas terras, tendo sobre elas direito 'natural' e 'originário', anterior à própria formação do Estado brasileiro (ver Carneiro da Cunha, 1987). A atual Constituição reafirma essa tradição no Artigo 231, ao reconhecer aos índios "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". E vai além, definindo essa ocupação não só em termos de habitação, mas também em relação ao processo produtivo, à preservação do meio ambiente e à reprodução física e cultural dos índios. Embora a propriedade dasterras ocupadas pelosíndios seja da União, a posse permanente é dosíndios, aos quais se reserva a exclusividade do usufruto das riquezas aí existentes. Com a atual Constituição, o Congresso Nacional passou a ter novas atribuições quanto à condução da política indigenista oficial, que deixou de ser exercida somente pelo poder Executivo. Hoje, cabe ao Congresso autorizar a remoção dos índios de suas terras em casos de epidemia ou catástrofe, e no interesse da soberania do país, garantindo-lhes o retorno aos seus territórios tão logo cesse o risco. É também atribuição do Congresso Nacional regular a possibilidade de exploração dos recursos hídricos e minerais em áreas indígenas, tendo, entretanto, que ouvir previamente as comunidades indígenas. Assim, a Constituição de 1988 reconhece um direito coletivo, pela primeira vez na história constitucional brasileira, ao possibilitar que as comunidades indígenas exponham suas opiniões perante o Congresso Nacional (ver Souza Filho, 1988). Há alguns anos, os parlamentares estão discutindo uma lei que discipline a mineração em áreas indígenas, mas ainda não chegaram a um acordo que possibilitasse a aprovação dessa lei. Outra inovação importante dessa Constituição está em garantir aos índios, a suas comunidades e organizações, capacidade processual para entrar na Justiça em defesa de seus direitos e interesses. Com esse dispositivo, deixou de ter valor o Artigo 37 do Estatuto do índio, que previa a assistência do órgão tutor ou do Ministério Público nessas iniciativas. O Ministério Público é chamado a participar desse processo, mas não é mais condição para sua instauração. Com isso, muitas comunidades podem hoje lutar por seus direitos na Justiça. Aqui, também, se reconhece um direito coletivo, ao afirmar que tanto as comunidades quanto as organizações indígenas são partes legítimas para acionar a Justiça. De acordo com o Artigo 129, o Ministério Público deve acompanhar os processos judiciais envolvendo os direitos indígenas, que são resolvidos no âmbito da Justiça federal. O Artigo 210 da Constituição assegura às comunidades indígenas o uso de suas línguas maternas e de seus próprios processos de aprendizagem, cabendo ao Estado proteger as manifestações de suas culturas (Artigo 215). Novas perspectivas Tais dispositivos abriram a possibilidade para que a escola indígena constitua um instrumento de valorização dos saberes e das tradições indígenas, deixando de se restringir a um instrumento de imposição dos valores culturais da sociedade envolvente. A cultura indígena, devidamente valorizada, deve ser a base para o conhecimento dos valores e das normas de outras culturas; a escola indígena poderá desempenhar um papel importante e necessário no processo de autodeterminação desses povos. Um desdobramento desse dispositivo foi a aprovação de dois artigos tratando de educação escolar indígena na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Darcy Ribeiro). A Lei de Diretrizes e Bases antiga nada dizia a respeito do tema. A atual prega que é dever do Estado oferecer uma educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, fortalecendo as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade e dando-lhes acesso a informações e conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional. Os direitos indígenas incluídos na última Constituição contrariam em vários aspectos o Estatuto do índio (de 1973); impôs-se assim a necessidade de reformular o documento antigo. Foram apresentados diversos projetos, que aguardam aprovação no Congresso. Os dispositivos referentes aos direitos indígenas presentes na Constituição de 1988 representaram uma vitória daqueles que atuam em defesa desse segmento da população brasileira. Porém, tanto o processo constituinte quanto a atividade permanente do Congresso Nacional mostram a necessidade de um acompanhamento constante da atividade legislativa para bloquear a ação dos inimigos dos interesses indígenas. No Brasil, desde os tempos coloniais, há uma larga distância entre o que está estabelecido na lei e oque ocorre de fato, na prática. E as sociedades indígenas sempre ocuparam uma posição ambígua perante o Estado nacional. Por um lado, os índios são fundamentais para a ideologia da nacionalidade brasileira: são os habitantes originais, que deveriam ser incorporados à sociedade para legitimar o domínio do novo Estado-Na-ção. Por outro, as populações indígenas eram - e continuam a ser - vistas como obstáculo ao progresso e aos projetos de desenvolvimento do país. Do ponto de vista do Estado, a solução para essa ambiguidade foi a elaboração de uma legislação protetora, que reconhecia direitos formais aos índios e permitia, na prática, seu desrespeito sistemático (ver Durham, 1983). Lutar contra essa prática é um dos objetivos do movimento indígena e do movimento de apoio aos índios. O Artigo 67 do "Ato das Disposições Constitucionais Transitórias" da Constituição de 88, que previa um prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas, não foi cumprido pelo governo federal. Das 566 terras indígenas existentes no Brasil, menos da metade está demarcada e registrada em cartórios de registro de imóveis e no Serviço de Património da União, como manda a lei. Organizações indígenas Na trajetória iniciada há mais de dez anos, com a promulgação da atual Constituição, os índios e seus aliados têm lutado para que seus direitos sejam de fato respeitados, tanto pelo Judiciário como pelo Executivo. As associações e organizações indígenas têm cumprido um papel importante nesse processo. A maioria delas foi criada no final dos anos 80, principalmente após a promulgação da Constituição. Realizando assembleias e reuniões, elegendo diretorias, registrando estatutos em cartórios e abrindo contas bancárias, vários grupos indígenas se apropriaram dessa forma de representação política. Tais formas de organização fizeram surgir novos líderes e novas possibilidades de aliança. Conquistando espaços na mídia local e nacional, passaram a atuar como interlocutores na discussão e no encaminhamento de reivindicações junto a órgãos do governo e a outras entidades do movimento social. Segundo o antropólogo Carlos Alberto Ricardo (1995, p. 48), essas organizações representam: [...] a incorporação, por alguns povos indígenas, de mecanismos de representação política por delegação, para poder lidar com o mundo institucional, público e privado, da sociedade nacional e internacional e tratar de demandas territoriais (demarcação e controle de recursos naturais), assistenciais (saúde, educação, transporte e comunicação) e comerciais (colocação de produtos no mercado). Boa parte dessas organizações tem base local e étnica, reunindo aldeias do mesmo grupo étnico. Outras se propõem a reunir povos de uma mesma área ou região e há, ainda, algumas que pretendem ter representação nacional. Apesar de todas as dificuldades para constituir tais organizações e transformá-las de fato em organismos de expressão e de representação dos interesses das comunidades indígenas, essa mobilização tem possibilitado a conquista de espaços no cenário político local e nacional, permitindo que elas atuem como interlocutoras dos agentes da sociedade envolvente. Ao se organizar em associações, os índios avançam na conquista de sua cidadania. Uma cidadania da qual eles, tal como outros segmentos da sociedade brasileira, estiveram excluídos por muitos anos.Já se foi o tempo de missionários, juristas e políticos decidirem o destino dos índios. Isto cabe a eles. A eles cabe o direito de decidir seu futuro, resolver o que querem mudar e o que pretendem manter. A nós, cabe lutar por uma sociedade que saiba respeitar a diferença e conviver com ela, possibilitando a todos o acesso à plena cidadania. Bibliografia ANDRADE, Lúcia & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 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Disponível em http://www.forumeja.org.br/ei/files/os%20indios%20e%20a%20cidadania%20pdf.pdf 8 h 19/04/2020



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